Editado por Ioana Pârvulescu
(Bucareste: Humanitas, 2015; 401 páginas)
Casa Mercur. A derradeira imagem que tenho de meu pai, nos anos 80. Tem espondilite. Usa uma espécie de joelheira. Duas vezes por mês, levanta-se às 7 da manhã e, puxando uma perna, gemendo, dirige-se à poltrona da sala, ao lado da mesinha onde fica o telefone. Está armado com um lápis. Respira fundo e, em seguida, como um atleta depois do tiro de largada, dispara. Durante duas horas ininterruptas – pois a linha está sempre ocupada –, meu pai disca os números com auxílio do lápis, tentando falar com alguém da casa de encomendas Mercur. As lojas estão vazias e, para uma família grande como a nossa, conseguir uma encomenda na casa Mercur é uma bênção. Passo em frente à poltrona pisando atentamente, com toda a cautela para não atrapalhar meu pai, ocupado naquela operação de tamanha importância. E, quando estou bem à frente dele, fico pensando quantas vezes pode-se discar um número de telefone em duas horas. Faço a conta rápido, de cabeça: seis vezes, digamos, por minuto, 360 por hora, umas 700 vezes em duas horas. Observo-o com o rabo do olho, cheio de admiração. Discar o mesmo número de telefone 700 vezes.
Ao cabo daquelas duas horas de tenacidade exemplar, são dois os desfechos possíveis. Um: “Casa de encomendas Mercur. Hoje não recebemos mais encomendas. Não temos mais nada.” E desligam o telefone. Meu pai permanecia um tempo na poltrona com um ar de derrotado. Ou: “Casa de encomendas Mercur. Pois não. Estou ouvindo”. E então começava o diálogo que meu pai conduzia, após tantas experiências amargas acumuladas, com maestria sem igual: “Bom dia minha senhora. Tem queijo? Dois quilos, pode ser? Então, um quilo”. E a conversa continuava: 250 azeitonas, quatro latas de presunto, quatro de enguia em molho de tomate, 500 gramas de queijo amarelo, uma caixa de cacau holandês, um vidro de Nutella… Quando a conversa acabava, meu pai bradava triunfante da poltrona: “Mercur! Amanhã às dez chega a encomenda!”. Quanto orgulho transparecia da sua voz! Todos os que estavam em casa naquele momento vinham felicitá-lo. “Parabéns, pai! Você foi bárbaro!”. Meu pai arrastava-se de volta para a cama, com uma enorme satisfação no rosto.
Qual filósofo disse que a alegria só surge por contraste com a privação? Pois a dor e o prazer, apesar de duas, “parecem desprender-se da mesma cabeça”. Graças ao lápis paterno enfiado por duas horas no disco do telefone, duas vezes por mês, no apartamento da Dr. Lister aportava a “encomenda da Mercur”. Um tipo com um uniforme cinza-petróleo aparecia, ciente da sua própria importância, com um caixote de plástico da mesma cor do uniforme, colocava-o na mesa da cozinha sob o olhar atento do meu pai, que, sem os óculos, com seus olhos míopes, verificava na fatura os bens cujos nomes, à medida em que eram retirados do caixote, o mensageiro da felicidade apregoava, um após o outro: “Nutella! Queijo coalho! Azeitonas! …”. Minha mãe os recebia, movendo-os um palmo mais para o lado. Parecia estar acariciando-os. Depois, o sujeito recebia a gorjeta e sumia. Minha mãe continuava ajeitando tudo na despensa. Enquanto colocava o pote de cacau numa estante, ouvia-a falando contente: “Sábado faço um bolo de chocolate…”. (Gabriel Liiceanu, do capítulo “18. Comes e bebes”, págs. 327-328)

Iguarias. No fim dos anos 80, minha família, com laços muito distantes com a zona rural para conseguir comida sem dificuldade e com uma “criança” (eu) terrivelmente alérgica a qualquer produto químico presente nos alimentos comprados em pequenas quantidades e por meio da cartela de racionamento, aproveitou a moda – não sei de onde surgira, no começo não nos interessava em absoluto – das roupas de pele de castor. Os de bolso cheio as encomendavam das lojas de peles locais e na nossa região floresceu um inteira indústria privada, a dos criadores de castor. Duas casas mais para lá da nossa, uma família engrossava os rendimentos dessa forma; os berros dos pobres animais enjaulados cortavam o ar dos quintais e habitavam com frequência nossos pesadelos. Certa feita, quando a matança para a obtenção da pele foi além da conta, nosso vizinho errou pelas portas das casas da rua, oferecendo os animais recém-esfolados, aconselhando acerca de receitas de como cozinhar um castor e prometendo mais carne fresca, no futuro. Meu pai pegou o castor e trouxe para casa. Minha mãe e eu protestamos, sentimos enjoo, abandonamos a cozinha vociferando. Meu pai dizia que éramos esquisitas: “Vocês não percebem que temos carne fresca, que esses bichos só comeram cenoura e que nunca ingeriram coisas químicas? Por que vocês têm nojo?”. Ele próprio o preparou, como se fosse um coelho, usando cebola e outros condimentos, na cozinha abandonada por nós, mulheres. Quando tirou o castor do forno, cheirava tão bem, ao ponto de retornamos à mesa da cozinha. Nos reconciliamos, saboreamos o assado de castor e decidimos nos inscrever na lista do vizinho para receber outros animais sacrificados. Coisa que realmente aconteceria: as linguiças de castor, posteriormente inventadas pelo meu pai, eram uma verdadeira iguaria da qual agora, às vezes, tenho muitas saudades. Já casacos de pele de castor, nunca usei. (Ioana Bot, ensaísta, do capítulo “18. Comes e bebes”, págs. 320-321)
Adaptação ao meio. Depois de uma excursão tínhamos chegado, mortos de fome mais ainda de sede, num boteco do vilarejo Dâmbovicioara. Pedi uma Quick Cola, substituto romeno da célebre Coca-Cola, com um gosto forte de produtos químicos. Não tive escolha. Tomei de um gole só. Na garrafa vazia descobri uma baratinha. Pois, com a bebida daquela cor, tinha se camuflado perfeitamente. (Corneliu Ioan Marinescu, médico, do capítulo “18. Comes e bebes”, pág. 327)

Como cozinhar um ovo. Certa vez passei na casa de meus pais. Durante o dia não havia gás, pressão zero. O réchaud elétrico tinha quebrado, e minha mãe tentou cozinhar um ovo numa vela, para o meu pai, que tinha que sair até o centro da cidade. Nunca soube se meu pai comeu aquele ovo cozido ou cru. (Elena Teodoreanu, climatologista, do capítulo “18. Comes e bebes”, pág. 327)
Meter / Dar. As lojas eram via de regra vazias. E quando chegava alguma mercadoria a informação corria logo de boca em boca: “Meteram ovos lá na …”, “Estão dando manteiga ali no…” Tinha até uma piada: num inverno, um turista da Alemanha Ocidental de passagem pela Romênia vê uma fila gigantesca na rua, pessoas cansadas e tremendo de frio. Pergunta o motivo daquele pessoal estar ali. “Estão dando manteiga”, respondem-lhe. “Ah, nesse caso, diz o homem do Oeste, eu por mim prefiro comprar!”. Talvez mesmo hoje um ocidental não entenda a piada, assim como o alemão da história não entendeu corretamente o porquê da fila: achou que “estão dando” significava que se ofertava, que se presenteava. Um alemão do Leste poderia explicar-lhe que “estão dando” significava que “eles”, quer dizer, os que têm o poder, estão dando permissão para que a população faminta tenha pequenas e fugazes alegrias. (Do capítulo “Pequeno dicionário de termos do comunismo”, pág. 367)
Chocolate mais forte que bala. No dia 21 de dezembro de 1989, na Revolução, tiros na Praça do Palácio. E, perto dali, numa lojinha da rua Onești, na esquina com a avenida principal, “meteram” chocolate (mercadoria há tempos extinta no comércio). Portanto, tiroteio na praça, o curso da história a um passo da mudança, mas as pessoas acudiram à fila do chocolate. (Anônimo, do capítulo “18. Comes e bebes”, pág. 338)