GURĂNEȘTI

Este capítulo faz parte do livro “Ţara ascunsă. Un ghid turistic alternativ al României” (Drăgan, George, Editora Adenium)

Este capítulo faz parte do livro “Ţara ascunsă. Un ghid turistic alternativ al României” (Drăgan, George,

Do ponto de vista turístico, Țara Hațegului é conhecido especialmente pela reserva de bisontes de Slivuț, o castelo medieval de Râu de Mori e a igreja de Densuș. O que os guias turísticos não mencionam é uma atração turística excepcional, única na Europa: a vila de Gurănești, localizada a cerca de 25 km a sudoeste da cidade de Hațeg, no triângulo formado pelas vilas de Brazi, Râu de Mori e Suseni.

Esta aldeia escondida entre as florestas de faias do vale Y tem uma história fascinante. Toda a área fez parte, durante séculos, do domínio feudal da família de barões Kendeffy, uma família da grande nobreza húngara, cujas raízes, segundo alguns historiadores, são os antigos Cândești, cnezos valáquios.

O aparecimento de Gurănești está diretamente ligado à família Kendeffy, a aldeia sendo fundada por Ladislau (Laszlo) Kendeffy, o décimo primeiro barão desse nome, um exemplo do que chamamos hoje de “nobre iluminado” da segunda metade do século XIX. Nascido em 1834 no castelo da sua família em Sântămăria Orlea, Ladislau Kendeffy cursou o ensino médio em Arad e depois a Faculdade de Ciências Naturais em Viena, graduando-se magna cum laude em 1856. Ele trabalhou como lecionador e depois como professor universitário em Viena, e, a partir de 1875 em Budapeste. Apesar da sua carreira acadêmica, o Barão Laszlo não esqueceu seus lugares de origem, que incluíam o domínio da família em Hațeg, administrado por um tempo por seu irmão Gyorgy. Em 1868, ele trouxe e cultivou aqui uma nova variedade de milho que era mais resistente à seca e tinha um grão maior, e em 1872 ele planejou montar em Șiria a primeira fazenda de avestruzes da Europa . Em 1865, ele fez sua primeira viagem ao Brasil como parte de uma expedição científica austríaca. Foi uma experiência reveladora para o jovem cientista da Transilvânia. Fascinado pela biodiversidade botânica da Amazônia, Kendeffy iria financiar e organizar mais duas missões para explorar as selvas da bacia hidrográfica desse grande rio. A última delas, que ocorreu em 1879, está ligada à história da aldeia de Gurănești.

Pois Ladislau Kendeffy não só retornou da selva com os herbários cheios de plantas desconhecidas na Europa naquela época, mas também trouxe 51 famílias de índios guaranis compradas de um certo João Calvo, proprietário de uma plantação de seringueiras. Segundo aprendemos de seu diário, a razão para esta compra não era tanto científica, mas puramente humanitária: impressionado com as condições desumanas em que os índios viviam e eram explorados, Kendeffy não hesitou em comprá-los em troca de US$ 1.200, com a intenção de libertá-los imediatamente. O plano revelou-se ingênuo, pois após a libertação Kendeffy descobriu que os ex-escravos não tinham praticamente outro futuro a não ser voltar à escravidão. Entendendo esta cruel realidade e, enquanto isso, tendo criado laços afetivos com os beneficiários de suas boas intenções, Kendeffy teve a idéia que levou ao estabelecimento da atual aldeia de Gurănești: transportar os índios para a Europa e instalá-los em um dos domínios da família. Foi assim que, em 9 de abril de 1880, 402 índios Tupi-Guarani chegaram em Țara Hațegului e foram instalados numa aldeia nova, construída especialmente para eles: a aldeia de Guarany, 30 km a sudoeste da cidade de Hațeg. Aparentemente, a aldeia deveria originalmente corresponder às tradições de habitação da selva amazônica, mas a intervenção do Arcebispo de Arad mudou esses planos, de modo que o assentamento foi projetado de acordo com as normas europeias da época. A integração dos índios no novo ambiente não foi tão difícil quanto se esperava, aprendemos do diário do Barão Kendeffy. Por exemplo, a conversão dos recém-chegados ao cristianismo foi rápida. Afinal, não foi difícil para eles identificar o Reino dos Céus prometido pelo “deus pregado na madeira”, esse reino do amor, da paz e da vida eterna, com a “terra onde o mal não existe” da sua própria mitologia. Assim, menos de dois anos após sua instalação em Hațeg, a igreja da nova comunidade foi consagrada com a festa do Espírito Santo. Por insistência do Barão Laszlo, um padre com experiência missionária, o padre jesuíta Benedikt, foi escolhido como pároco. Ele teve a ideia de encorajar os membros de seu rebanho espiritual a contribuir para a decoração do local de culto. As estátuas dos santos e o crucifixo em frente ao altar foram esculpidas por índios. Surpreendentemente, os santos que os guaranis produziram não correspondem à sua fisionomia: eles são figuras altas com uma pele branca brilhante. O comentário do Padre Benedikt, preservado em uma carta, é amargo: parece que os pobres índios não podiam imaginar os homens de Deus como tendo o rosto do escravo nativo sul-americano, mas o do todo-poderoso conquistador, o colonizador branco… Estas estátuas podem ser vistas ainda hoje na igreja católica romana de Gurănești. Quanto às atividades dos índios em seu novo habitat, pode-se dizer que eles se dedicavam à exploração madeireira, por isso Laszlo Kendeffy abriu uma modesta fábrica de móveis na aldeia. Ao mesmo tempo, cada família recebeu uma determinada área de terra agrícola para seu próprio uso doméstico. Foi uma iniciativa duvidosa no início, pois os índios estavam acostumados à forma coletivista de propriedade, o que atraiu a admiração do padre Benedikt e o assombro dos aldeões romenos e húngaros nas aldeias vizinhas. A relação entre os índios e o povo local é o aspecto mais sensível da integração da comunidade Guarani em Hațeg. Não esqueçamos que estamos no século XIX, em um canto da Europa. Não nos surpreenderemos, então, com as notas de Kendeffy, que observa que seus vizinhos dos índios encaram os recém-chegados com espanto ou mesmo com suspeita. “Afinal de contas, eles têm conhecimentos geográficos extremamente vagos”, escreve Kendeffy. “Seu mundo, já confuso, se estende na maioria das vezes até Viena ou Constantinopla, no máximo até algum vago país dos francos ou dos italianos. A África, da qual poucos ouviram falar, é para eles uma terra quase fabulosa, algo que tem mais a ver com os contos de fadas do que com geografia. Não fiquei chocado, portanto, ao saber que os aldeões do Brazi, Sălașu ou Suseni acreditam que os Tupi são macacos trazidos da selva pelo conde. Até mesmo um homem que possuía alguma educação, o professor Fischer da escola secundária de Hațeg , os considera o elo perdido na teoria evolutiva de Darwin, aquele antropoide intermediário entre o primata e o homo sapiens”! Também pelo diário do barão aprendemos que os padres das aldeias vizinhas tentaram explicar aos fiéis que os recém-chegados eram pessoas igual a eles e até cristãos — mas não sabemos com que sucesso. O que é certo é que, para acelerar a integração dos índios, uma escola e um posto de saúde foram instalados em Guarany e, após muitos esforços em Budapeste, os habitantes locais receberam a cidadania e a nacionalidade húngaras. Embora tenham se tornado formalmente húngaros, os índios não foram aceitos mais rápido por seus vizinhos. Os casamentos mistos eram simplesmente inexistentes, pois tanto os romenos quanto os húngaros das aldeias vizinhas simplesmente não podiam conceber isso. A fim de fazer com que os camponeses romenos e húngaros superassem, pelo menos no futuro, a barreira mental que os impedia de se aproximar de qualquer forma dos Guarani , Kendeffy teve a ideia de mandar as crianças indígenas para escolas nas aldeias vizinhas. “As crianças são menos preconceituosas”, previa ele em seu diário. “Ao aprenderem e brincarem juntas desde pequenas, eles formarão amizades e se acostumarão umas com as outras”. A experiência parece ter tido sucesso, segundo aprendemos do mesmo diário. Crianças nativas e índias compartilharam não apenas salas de aula, mas também jogos e histórias. Talvez tenha sido este contato a nível de infância entre as duas comunidades que esteve na origem do “escândalo” que — por um curto período e pela única vez — trouxe o caso Guarany à atenção da imprensa.

A princípio timidamente, sussurrando, depois de forma cada vez mais persistente, rumores e histórias estranhas começaram a circular pelas aldeias vizinhas, levadas de casa em casa pelas crianças. Pouco a pouco, os adultos também começaram a acreditar neles. Assim, um guarda-florestal, um colhedor de cogumelos ou um apanhador de lenha diziam que teriam ouvido no meio da noite rugidos assustadores de um animal desconhecido ou gritos de pássaros ou talvez de espíritos desconhecidos para eles. As crianças de Brazi falavam de uma pantera assombrando as colinas, e algumas mulheres de Suseni que haviam levado seu gado para o rio, de uma cobra enorme.

Tudo isso e outras coisas parecidas foram se juntando ao longo do tempo, ninguém sabe de onde vieram, e se cristalizaram na fobia da onça-pintada de Hațeg, sobre a qual escreveram os jornais de Arad e até mesmo de Budapeste. Prova de que tudo isso estava na mente das pessoas parece ser provado pela frustração de expedições repetidas para capturar a terrível fera, que supostamente teria sido trazida de barco pelos índios do conde. E, de certa forma, a onça-pintada foi de fato trazida pelas famílias guaranis, afirmava Joszef Richter, um jornalista de Budapeste com tendências teosóficas, psicanalíticas e ocultas, mas não em carne e osso, mas em seus sonhos e histórias.

A partir daí, de uma forma misteriosa e impossível de investigar com os meios específicos do jornalismo ou da ciência oficial, a onça-pintada se infiltrou na imaginação das pessoas e, mais ainda, no espírito do lugar. “Pois não são apenas as condições do lugar em que uma determinada comunidade vive que moldam e influenciam sua imaginação, o processo é igualmente válido no sentido inverso”, argumentou Richter. Mas esta teoria não foi provada segundo critérios satisfatórios para os cientistas ou para a população local, que continuou organizando caças e sendo assombrada por uma onça-pintada sabe-se lá de onde.

Expedições de caça em grande escala foram organizadas para capturar ou aniquilar a besta. Algumas delas foram patrocinadas pelo próprio Barão Kendeffy, em grande parte para apaziguar o descontentamento das pessoas que o culpavam pelo aparecimento da onça-pintada e para acalmar os ânimos. No entanto, tudo foi em vão. Nas armadilhas que ofereciam à onça-pintada como isca ovelhas e cabras vivas ou estripadas foram pegos vários lobos e um lince; os caçadores contratados não mataram nem uma onça-pintada, embora o prêmio de 1.000 coroas colocadas na cabeça do felino por um importante jornal de Budapeste os tenha feito vaguear pelos bosques de Hațeg durante meses e meses…

Eventualmente, por uma recompensa fabulosa, apelaram “ao maior caçador do império”, o croata Slaven Brozovich, que ostentava troféus como crocodilos do Nilo, jacarés, ursos polares e até mesmo um leopardo-das-neves morto nas montanhas de Pamir. Durante três semanas Brozovich vagueou pelas florestas entre o Râu de Mori e Suseni, apenas para declarar, misteriosamente, no final de sua missão, que “a onça-pintada existe, mas caçá-la não é trabalho que se faça com um rifle”.

O jornal prometeu retomar a campanha no próximo verão. Não cumpriu a palavra, mas não podemos culpá-lo; no verão seguinte iria eclodir a guerra conhecida hoje como a Primeira Guerra Mundial. Quem se importava com uma hipotética onça-pintada de Hațeg quando o mundo tremia até suas fundações, preparando-se para o fim? Então o caso foi encerrado e esquecido para sempre. Nunca descobriremos se uma onça-pintada realmente assombrou a floresta Hațeg, nem se a teoria de Richter estava correta.

Pois depois da guerra, o mundo era um lugar diferente, a aldeia Guarany e tudo mais.

Na verdade, após a união da Transilvânia com o Reino da Romênia, até mesmo o nome da aldeia foi mudado para o que é hoje: Gurănești. Uma das primeiras reformas realizadas no estado romeno após a guerra foi a expropriação de grandes propriedades, tanto no Velho Reino quanto nos novos territórios da coroa. Assim, mais de dois terços das fazendas dos barões de Kendeffy foram expropriadas naquela época; entretanto, a aldeia de Gurănești permaneceu na família, provavelmente também porque não era relevante do ponto de vista agrícola. Contudo, outras mudanças aconteceram: a cidadania e a nacionalidade dos habitantes tornaram-se romenas e o romeno foi introduzido como língua de ensino na escola do vilarejo. Os nomes também foram “romenizados”, de modo que os nativos da Amazônia constavam nos documentos públicos como Ciobanu, Munteanu, Păduraru e assim por diante…

Ms esta romenização não foi recebida com protestos, ao contrário de outros casos em que os cidadãos húngaros perceberam como uma agressão contra sua identidade a transformação dos nomes das localidades em que viviam ou de seus nomes pessoais, talvez porque, embora oficialmente húngaros, os habitantes de Gurănești não se sentiam de modo algum húngaros. Para eles, a mudança dos nomes de Kerestesz para Rotaru, por exemplo, não significou nada.

Naqueles anos do pós-guerra, porém, a comunidade enfrentou um problema sério: dado o número relativamente pequeno de índios e a natureza fechada da comunidade, havia o perigo de consanguinidade como resultado de casamentos que ocorriam exclusivamente entre seus membros. “Os casamentos mistos provavelmente levarão à assimilação dos guaranis e, com o tempo, ao apagamento de sua identidade cultural e racial, mas são a única solução para evitar uniões incestuosas e os males da consanguinidade”, escreveu Laszlo Kendeffy em 1921. Incapaz de convencer os romenos ou húngaros a superar sua relutância em casar-se com um homem ou mulher tupi, o barão recorreu à instalação, na periferia da aldeia de Gurănești, duma comunidade de ciganos trazida de outra fazenda da família, de Sibiu. Assim, o censo de 1932 registrou 224 romenos étnicos (sic!) e 145 ciganos no vilarejo de Gurănești. Parece que na quarta década os casamentos mistos entre os membros das duas comunidades, embora bastante raros, também não eram excepcionais. A aldeia de Gurănești começava a ser conhecida pelo nome que hoje os habitantes de Râu de Mori, Brazi ou Suseni usam: “terra dos ciganos”.

No entanto, até isso acontecer, houve a Segunda Guerra Mundial, na qual a aldeia deu ao Exército Real romeno 17 soldados ativos que morreram todos na frente oriental, nas batalhas pela libertação da Bessarábia que ocorreram em Kuban e Crimeia. Não podemos não expressar nossa estupefação perante esta piada histórica. Após a guerra e o estabelecimento do poder comunista, o país mudou novamente. Os nomes da aldeia e das pessoas permaneceram os mesmos, mas, como vimos, os nomes foram a última coisa com que os Tupis, primeiro húngaros e depois romenos, se preocupavam.  O vilarejo de Gurănești não escapou à nacionalização que as autoridades comunistas realizaram nos anos ’50. O Barão Kendeffy morreu velho e pobre em Sântămăria Orlea, em 1951. Nos últimos anos de sua vida bebia chá com rum na taberna, junto com os camponeses igualmente desanimados quanto ele, não se queixava, suas botas estavam tão polidas como quando ele era o “patrão”. As propriedades que permaneceram na família após a expropriação de 1920, incluindo o domínio de Gurănești, iriam ser nacionalizadas. Oitenta anos após sua chegada a estas terras, os locais estavam oficialmente retornando à forma de propriedade comum à qual seus avós haviam renunciado com tanta relutância. Desta vez, também não foi fácil. Contaminados pelo amor tradicional valaquiano de sua própria terra, os Tupis recusaram a coletivização de boa vontade, as autoridades tendo que recorrer, como em tantos outros lugares, a ameaças, pressões e até mesmo à força. Dois aldeões, um certo Pedro Ciubotaru e um outro chamado João Lupu, eram membros de um movimento armado de resistência anticomunista que foi rapidamente aniquilado no início dos anos ’50. Eventualmente, com a ajuda do exército e dos batalhões das tropas de segurança, a coletivização triunfou, de modo que em 1971, o diretor do CAP Gurănești Francisco Munteanu, o único graduado de ensino superior da pequena cidade de Hațeg em sua existência de pouco mais de um século. O Sr. Munteanu, um jovial aposentado de 67 anos, ainda vive em Gurănești hoje. Ele é o último Guarani puro (ambos seus pais pertencem a este grupo étnico) e um dos poucos habitantes da aldeia que conhece com certa exatidão a origem de sua comunidade. “Os jovens já não se importam mais com isso, de qualquer maneira todos eles se foram embora”, diz ele. Embora ex-membro do partido, Munteanu não tem boas palavras acerca dele: “Os comunistas acabaram com tudo, afinal de contas. E o que se destruiu depois disso, depois de ’89, também foi causado pelos comunistas, porque eles arruinaram as pessoas”. Perguntei-lhe como se via: Guarani, como seus pais; húngaro, a nacionalidade “oficial” deles até 1919; romeno, como consta nos documentos pessoais; cigano, como é percebido pelos habitantes das aldeias vizinhas? “Romeno, é claro. Da língua tupi, mal conheço algumas palavras. Húngaro não posso me sentir, porque nasci na Romênia, com nacionalidade e cidadania romenas. O que me resta, então? Romeno. Cigano, nem pensar!” Ele se lembra que durante seus anos de estudante na universidade de Cluj tinha fama de brincalhão ou mitômano entre seus colegas: “Quando lhes dizia que eu era na verdade índio Guarani da Amazônia, eles riam. A maioria deles, é claro, nunca tinha ouvido falar do povo guarani e achava que era algo que eu inventava”. Quando encontrava ciganos na rua, por exemplo, meus colegas de turma me diziam: Olha lá uns tupis da Amazônia. Me apelidaram de “brasileiro” e pensavam que eu era cigano. Quanto aos seus compatriotas, descendentes dos casamentos mistos entre índios e ciganos “căldărari” trazidos a Gurănești pelo conde nos anos ’20, Munteanu tem uma opinião diferente: “Estes jovens são nem-nem, nem húngaros, nem romenos, nem guaranis, nem mesmo ciganos. Todos eles foram trabalhar na Espanha, nas plantações de laranja e morango”, acrescenta ele, rindo amargamente. “Quem te viu e quem te vê! Ainda assim, parece melhor do que nas plantações de seringueiras, não é mesmo?”

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