ADINA POPESCU
Publicado na revista “Dilema Veche” , nr. 816, 10-16 de outubro de 2019
Aconteceu numa cidadezinha anônima da Transilvânia que não tinha mais de 10.000 habitantes, a ferrovia parava lá – a última parada do trem que vinha de Oradea, depois dela começavam as montanhas. Construíra-se blocos comunistas de quatro andares, mas ainda não tinham “inventado” o aquecimento e naquela época não havia centrais térmicas de apartamentos, então todo mundo se esquentava com lenha, pilhas inteiras de lenha se erguiam atrás dos blocos no outono, depois guardadas nas garagens, onde raramente encontrava-se também um Dacia antigo e precisando de conserto. Novamente no outono, toda a ala feminina da cidade se reunia ao redor de umas chapas enormes para grelhar berinjelas e pimentões – chapas comuns, como as mulheres as chamavam –, alimentadas com a mesma lenha das florestas dos arredores. Pilhas inteiras de berinjelas compradas por uma ninharia do pequeno mercadinho público local.

Não tinha manteiga, carne e salame, em compensação, os legumes saíam baratos e eram os suprimentos necessários. A época da zacuscă era um feriado em si que se repetia ano após ano e, assim como outros eventos semelhantes, dava um ritmo à cidade, marcando a passagem da estação. Tudo corria de acordo com uma boa organização, igual aos casamentos na Transilvânia – cada convidada/madrinha/afilhada de ofício tem um caderno no qual anota onde foi, quanto dinheiro deu, quanto custou o menu, onde ainda tem que ir, porque também os casamentos são, afinal, uma obrigação, se eu vou no seu, depois você tem que vir no meu. Havia também esses cadernos para a zacuscă coletiva, com horário marcado para a chapa, os dias e as horas, ainda que todas ficassem por lá o dia todo na fila, aguardando de pé, as mais idosas naquelas cadeirinhas dobráveis de pescador. Todas aguardando que a usuária da vez finalizasse seu trabalho, o que era também uma ocasião de fofoca coletiva. Aqueles casamentos que mencionei também se arranjavam por lá, discutia-se sobre tudo, enquanto uma fumaça fina e azulada, não uma pesada e carregada como a de churrasco, se elevava por cima dos blocos comunistas esfolados. Eu me lembro do leve zumbido de vozes femininas entrelaçadas, uma falação contínua, enquanto suas mãos não paravam nem um segundo, virando as berinjelas de um lado para outro até ficarem pretas feito um tição, depois já começavam a beliscá-las, não importando de quem eram, na verdade tratava-se de ajuda mútua, de sobrevivência.

Em seguida, as zacuscăs começavam a ferver durante horas em grandes caldeirões de folha-de-flandres e só então a concorrência aparecia e acontecia uma troca das receitas, essencialmente a mesma, com pequenas variações, umas com grãos de pimenta a mais, outras com folhas de louro a menos, adicione mais óleo, porque sem óleo ela não dura, mas óleo é caro e está em falta. As mulheres se agitavam em volta dos caldeirões, através do vapor grosso do cozimento. Num passe de mágica apareciam os vidros recuperados das casas de estudante onde estavam os filhos, na faculdade em Cluj ou em Timișoara, e agora estavam todos limpos e esterilizados, brilhando na luz ainda generosa de um sol de outubro, se bem que à noite o frio chegaria, minha nossa, vê se te enrola com uma flanela, para depois não ficar reclamando de dor na cintura! Eu tinha 6 ou 7 anos, e tudo parecia bruxaria, algum tipo de ritual xamânico, umas mulheres saltitando ao redor do fogo e fazendo encantamentos. E os homens, faziam o quê nesse tempo todo? Geralmente, os “comportados”, que não eram de botequim, porque preferiam uma vida mais segura, mais doméstica (“Se continuar bebendo eu não cozinho mais!” é uma réplica que eu ouvi em várias formas na Transilvânia), carregavam coisas. Carregavam com obediência sacos cheios de berinjela, pimentão, cebola, depois os vidros vazios e cheios de um lado para o outro, subiam e desciam as escadas dos blocos de quatro andares, amontoavam-se como formigas, às vezes ainda cuidavam do fogo debaixo da chapa, mas nunca ficavam para conversar, não era digno deles participar da turma da fofoca. Mas deixa que a época deles logo vinha, no início de novembro, quando se faz țuică e eles com o maior prazer metiam sacos de ameixa nos Dacias já sobrecarregados. Os que planejavam uma produção “industrial” (ou seja, para ter estoque próprio até a primavera e anda distribuir para mais gente) arrumavam uma carroça, porque a țuică nunca era “produzida” por trás dos blocos comunistas e sob os olhar das esposas que poderiam vigiá-los das varandas, havia sempre uma caldeira misteriosa, a melhor caldeira, num vilarejo distante. Toda a operação levava um dia inteiro, e então eles se permitiam voltar para casa bêbados, por que, não tinha como, do vapor, do cheiro, você se embebeda rápido. Portanto, chegava a época da outra tribo, e o proprietário da caldeira era uma espécie de mestre de cerimônias, mantinha-se bêbado non-stop de outubro até o fim de novembro, quando se apagava o fogo da caldeira e ninguém mais tinha ameixa. Somente então ele despertava, tentando se refazer com o líquido das conservas, pois a esposa já tinha colocado o repolho na salmoura fazia tempo, logo viriam as festas de fim de ano e a época de fazer sarmales. Se o momento da zacuscă coletiva foi um que marcou minha infância (não sei se ainda conservaram a tradição nas cidadezinhas da Transilvânia), com a țuică só fui ver como é no ano passado, nos arredores de um vilarejo onde passavam carroças e havia uma choupana onde se chegava depois de ter nadado por um caminho lamacento. Zacuscă é feitiçaria, a țuică é alquimia pura, com alambiques e gotejadores, mas, a princípio, o ritual é mais ou menos o mesmo.

Também aqui tem que marcar hora, ainda que os homens não percam tempo para anotar a data num caderno, como é que vão se esquecer do grande dia? Na frente da choupana muitos esperam que aquele jinars [como a țuică é chamada em regiões da Transilvânia] do cara antes deles fique pronto. Enquanto isso, ficam degustando diversos licores que diferem apenas na qualidade das ameixas, o proprietário da caldeira recebendo a quota de cada um e servindo aos outros clientes. Ficam em pé naquele lamaçal, horas, dias, fumam e viram as doses num gole só, falam sobre os benefícios do” produto”. Se você ficar para ouvir, o jinars ganha dimensões mitológicas, é uma panaceia. Conhece fulano que tinha uma úlcera e que precisava de se operar urgente em Cluj e não foi, porque não queria entrar na faca? Bebeu em jejum jinars de ameixa com mel de abelha, duas semanas seguidas, mel limpo, não pode ser qualquer um, e aí pronto, sarou de vez. Conhece aquele velhote com a perna doída, mal conseguia andar de entrevado que ficou? Tomou jinars de ameixa, meio litro por dia e fez fricção com jinars na perna doente, hoje tá dançando em casamento. E aquele com brancura na vista, que parecia que via por uma peneira? Também se curou com jinars de ameixa, sei lá o que fez, vai que lavou os olhos, ou bebeu, vamos perguntar a ele. A senhora, que idade me dá? – o dono da caldeira milagrosa me pergunta. Digo 70, para lisonjeá-lo, mesmo que ele pareça ter bem mais. “Oitenta e dois faço em janeiro! E nunca tive uma doença na minha vida pra ficar de cama, não vou no médico faz cinco anos, e no inverno nunca pego resfriado… quer saber o segredo?”. Não, não precisa dizer, porque está na boca do povo – jinars de ameixa.

Em geral, as duas tribos, mulheres e homens, toleram-se mutuamente, tanto a zacuscă como a țuică são, na verdade, ocasiões para se separarem umas das outras e lhes dar aquele sentimento de pertencer a um grupo. E tem sido assim desde o início dos tempos, um velho mundo que está desaparecendo, especialmente nas grandes cidades. Só em Obor, no outono, reencontramos o espírito da zacuscă, da țuică, dos legumes em conserva, ainda vemos homens carregando sacos e mulheres comprando vidros vazios. Um dos meus lugares favoritos é o dos legumes em conserva, no pequeno edifício no final do mercado, onde tem aquele o cheiro forte de repolho fermentado que não tem nariz que aguente. Aqui sempre encontro um casal de velhinhos que vêm de bem longe, de Rădăuți, com seus pepinos em conserva perfeitos, nem muito azedos, nem muito salgados, nem flácidos, até um pouquinho crocantes. Sempre compro apenas 5 lei, mas eles ficam contentes que alguém passa por lá, naquele canto esquecido do mercado, e me dão de graça caldo de repolho para fazer sopa. Pergunto-me por que será que vieram justamente de Rădăuți para vender os pepinos em Obor. Talvez os próprios pepinos sejam apenas um pretexto e exista algo mais – a necessidade de encontrar um propósito, de ter uma utilidade, uma viagem que dá às suas vidas um significado agora, na reta final da existência. É a mesma coisa quando você recebe um vidro com zacuscă ou com doce de uma avó, uma tia ou até mesmo de uma mulher do campo com quem nem temos laços de parentesco, mas que sente a necessidade de te oferecer algo. Existe muito amor ali, naquele vidro.