OS MICI DE OBOR

OS MICI DE OBOR

Adina Popescu

Publicado na Dilema Veche, nr. 601, 19-25 agosto de 2015

 

– para Mirel Bănică –  

Já vai para mais de dez anos, é quase um ritual: sempre que vamos fazer compras no Mercado Obor (desde que me entendo por gente moro “na boca de Obor”, como se diz), encerramos com uns mici, que são comidos com palitinhos, como manda o regulamento, numa bandejinha de papelão regada com muita mostarda (daquela barata, romena, bem grosseira) e com uma mais que merecida cerveja. Às vezes comemos apressados, tomamos as cervejas e partimos, outras vezes pegamos o fim da feira, hora da xepa, e então vem o mais interessante – quando o sol se põe e sombras compridas se estendem pelos bancos cobertos com toldos, quando ainda restam alguns mici esfriados na grelha, esperando os últimos fregueses, quando os bêbados começam a cantar e quando as mulheres arranchadas no mercado, porque eu não posso dizer que são “da limpeza”, começam a varrer, com aqueles seus rostos abatidos, e lá se foi mais um dia dessa pobreza de vida! O terraço se fecha, mas as pessoas não querem ir embora, ficam enfeitiçadas, deslizam sem querer num estado de onirismo lúcido, podem imaginar que para além do Galpão Velho, cujas paredes encarnadas refletem os últimos raios de sol, existe uma outra vida, uma vida melhor. Se você apurar os ouvidos, vai até ouvir as ondas de um mar inexistente quebrando-se numa praia desconhecida que os espera.

Mas voltando aos mici de Obor, os de 2 lei, com mostarda, mas sem pão, a “chiflă” [pão branco redondo e pequeno] é vendida separadamente (se bem que todos os micimaníacos que se dão ao respeito devoram do pão próprio, que trazem na sacola): nunca são iguais, como no supermercado, alguns mais longos, outros menorzinhos, assados só pela metade, queimados aqui e ali, com gosto de carvão, temperados exatamente como tem que ser. Os famosos mici “cuspidos” de Obor – eu sei o que significa, mas que cada um de vocês imagine o que quiser, uns 50 amontoados naquelas grelhas negras, há séculos esperando limpeza, virados e revirados pelos “rapazes” que entendem do negócio, porque parece que também há séculos as mãos deles cheiram a carne e a gordura, os dedos já têm a forma e a cor de mici crus, já inalaram tanta fumaça que a respiração deles deixaria toda Bucareste coberta por uma névoa densa. É por isso que os mici deles saem assim tão bons, porque, quer queiram quer não, – “ossos do ofício” – , eles colocam um pouco de amor na coisa. Que Cocoşatu? Que Dealul Negru? Quando o assunto são os mici de Obor, seria preciso dedicar um manual inteiro de gastronomia suburbana só a eles.

Há tempos, na época dos manele [gênero musical contemporâneo, originário das comunidades ciganas], você achava mici em mais lugares e podia comparar as alternativas, todo o perímetro do mercado de Obor era repleto de barraquinhas e bancos, equipados com grelhas. Contudo, nós nunca íamos no botequim mainstream, aquele mesmo central, onde te acossavam todos os vendedores de bugigangas, “cigarros, cigarros”, “três pares por 10 lei”, “temos ovas da Manchúria!”, todos os mendigos e aleijados. Procurávamos lugares escondidos, “selecionados”, onde os manele eram suspensos “a pedidos”, onde se encontrava cerveja imported a preços irrisórios, no tempo em que Paulaner não estava na moda. Uma dessas bodegas tinha três mesas e esteiras de junco – um tipo de bar de Vamă avant la lettre, mas com mici. Os mici estabeleciam o vínculo entre as pessoas, mas também o pretexto de ficar mais tempo no mercado, o gordão com o avental manchado “do junco”, tinha mãos de bruxo, me lembro até agora a magia que começava em cima da grelha em brasa, naquele ar tremente.

Hoje, existem apenas quatro lugares onde se pode comer mici “de Obor”, também se regulamentou essa política, a dos mici, pois foi por conta disso que entramos na União Europeia. Na verdade, só existe um lugar. Os outros três são ou sazonais, ou não frequentáveis, porque se acontece de te acharem com cara de barão podem pedir 7 lei por uma porção de batata frita, como num restaurante “grã-fino”. As más línguas dizem que dois desses lugares são de parentes próximos de Onţanu [político que foi prefeito do setor 2 de Bucareste entre 2000 e 2016, quando  foi afastado por acusções de corrupção], porque somente ele manda soltar e prender no mundo dos mici.

Foto: Facebook / Terasa Obor

Agora paramos, como manda o figurino, na maior “micaria”, aberta seja inverno, seja verão, onde podemos ouvir Edith Piaf, Maria Tănase ou café concerto. Novos tempos, ocidentalizantes, mas a clientela é quase aquela da época das velhas barraquinhas, só que mais envelhecida, mais amuada. Aposentados que saem de casa só por sair e fugir da tagarelice das mulheres, compram duas cebolinhas e comem dois mici. Ficam sozinhos à mesa, não falam nada mesmo se chega alguém ao lado, têm olhos escorregadios, lacrimejantes e saudosos por causa da cerveja, permanecem perdidos no mundo deles. Em seus rostos de pergaminho você pode “ler” toda a história recente “da transição” da Romênia, todos os sonhos despedaçados. Os bebuns, para os quais “mici são ostentação”, e que por isso bebericam da garrafinha escondida na sacola para não comer a seco. Sofrem de “tagarelite”, pegam no pé do primeiro que aparece e tome falação. “Homens de negócios” de Obor que se vangloriam de ter “torrado 50 milhões” em dois dias. Mas também casais jovens que vem para Obor de bicicleta, comem mici como uma curiosidade local e vão embora. Ou grupos de estrangeiros acompanhados por um guia num tour atípico por Bucareste. Profissão boa – ensinar ao sueco como é que se espeta o palitinho nos mici e ainda ganha uma grana com isso. Famílias middle age, ele e ela, normalmente vêm ao mercado brigados, e fazem as pazes comendo mici. “Filho, que barato são aqui! Lá em Mogoşoaia a gente não comeu por 3 lei a unidade?”. Vem o mendigo e pede 1 leu. Ela, com toda a soberba: “Não temos nada, lá em casa é só um salário! Cai fora!”. Famílias modestas, crianças com patinetes, dandos voltas sem destino pelo terraço. “Vamos Mihăiţă, deixa o patinete pra lá, senão os micizinhos esfriam!”. Mulheres solteiras, mais jovens ou de mais idade, mordem os mici com um olhar brincalhão, viram o copo de cerveja, arrotam discretamente no guardanapo. E um chinês, que fala romeno bem, abocanha mici como se fossem rolinhos de primavera e xinga o Ponta [ex-primeiro-ministro, 2012-2015]: “a Lomênia é lica, mas os govelnantes são telíveis!”

Vou contar um segredo: não gosto de mici, mas os de Obor não deixo de comer por nada. Os mici “de Obor” são uma história em si próprios. Recentemente, no terraço “central” apareceu uma placa, que alguém arrancou de algum parque nas montanhas: “Atenção! Zona frequentada por ursos!”. Um velhinho primeiramente faz o sinal da cruz, e depois diz: “Mas claro, pois o urso também gosta de mici, coitado!”.

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