de Vlad Odobescu
Texto publicado em Scena 9 , 7 de outubro de 2016
À primeira vista, o mercado bucarestino Obor é a terra das sacolas sem fim. Flutuam por aqui bolsas de plástico negras, finas e anônimas; sacolas profissionais fazem patrulha, fundas, com alças saudáveis; tilintam sacolas de náilon com marcas de supermercado e bolsinhas plásticas de lojas de roupas já inchadas além da conta; passam carrinhos metálicos com barrigas de tecido, e deles saem verduras e revistas com histórias mais ou menos verdadeiras.
Todos os dias, dezenas de milhares de cidadãos estudam as bancas da feira e, aqui e ali, abrem bem a boca das sacolas para abarrotá-las de produtos. Numa cidade apinhada de supermercados e descontos, habitada por gente com gostos cada vez mais sofisticados e regulada pelos padrões europeus, parece um milagre que Obor ainda resista. Para além das sacolas, esse lugar contém um universo particular que não bate bem com os bips dos scanners dos caixas de supermercado e com as balanças onde o próprio cliente pesa os produtos. As pessoas em Obor procuram se encontrar, para se orgulhar com a descoberta do melhor queijo e do melhor peixe, para negociar, para se impressionar e, quando for preciso, para brigar. “Sete lei em Obor? Quase dois euros!”, exclama uma senhora sobre não sei qual produto, e o vendedor se diverte quieto depois de ela ter passado: “Em Obor, sim!”.
Obor é o lugar onde a pobreza e a abundância se encontram. Vê-se isso dos dois lados da banca de feira: quanto mais surrado o colete do vendedor, mais alta é a montanha de mercadoria na frente dele; quanto mais coitado parece ser um cliente, mais bolsas ele carrega, e mais graúdas. As cores das mercadorias cobrem o cinza do local, dominam, dizem “não é assim tão ruim”. A impressão que fica é de que sempre foi assim, embora o espaço em si tenha mudado: em 2006, a Prefeitura do Setor 2 varreu 9.000 metros quadrados de bancas de feira, e alguns anos mais tarde apareceu esse galpão com escadas rolantes, mesas vermelhas padronizadas e mais respeito para com as condições higiênico-sanitárias. Deve ter sido assim também no começo dos anos 50, quando foi inaugurado o galpão de tijolo vermelho projetado por Horia Creangă. Ou, séculos atrás, quando o local do Mercado de Fora foi sistematicamente empurrado para mais longe do centro, por medo das doenças espalhadas pela carne dos animais abatidos aqui. Mas o mundo antigo sempre se reacomodou sem acanhamento no novo décor.
Ando por entre as bancas com Ciprian Muntele, apresentador de um matinal na rádio Tananana, ciclista e bom amigo. Na verdade, sigo-o como um aprendiz: ele sabe bem como é o negócio, orienta-se no galpão grande feito um marinheiro no meio do oceano. Sabe provar a mercadoria, o que perguntar para criar um clima amistoso, e sabe também o que não se deve perguntar. Passamos pelas bancas até que paramos na frente de um montinho de “peras mt doces e perfumadas”, ao lado do qual se levanta um outro de “peras mt doces e suculentas”. Decide levar um quilo de cada para testar o aroma e a suculência, respectivamente. Escolhe depois uma couve-flor nem tão grande, nem tão pequena. Ciprian é um usuário constante da hashtag #obor, e dá para que é mesmo. Ainda tem que comprar por aqui coentro – que para mim é feito uma salsa, embora aparentemente uma coisa não tenha nada a ver com a outra –, talvez também zimbro, que será colocado para secar. Desse périplo resultará uma sopa creme de couve-flor e uma foto que deixará o Facebook com água na boca uma hora antes do almoço.
Ciprian não se lembra de quando veio a Obor pela primeira vez. Acha que é um esquecimento bonito esse, porque é como se viesse aqui desde sempre. Certo é que, de uns três anos e meio para cá, vem a Obor pelo menos uma vez na semana. Quase nunca sabe o que realmente precisa comprar. Primeiro para no terraço entre os galpões, pega uma bandejinha com cinco mici e procura uma mesa onde possa debater os problemas da humanidade. O terraço com mici é um lugar miraculoso. Sob um toldo – entre pilastras decoradas com réstias de alho e cestos entrançados – mesas retangulares de madeira rosada, mesas redondas para os que preferem ficar em pé, e, especialmente, tempo à vontade.
Quando está só, Ciprian puxa conversa com algum personagem mais isolado. A maioria parece pertencer à classe dos “senhores de idade que saíram para encher o sifão, operação que duraria 15-20 minutos, mas só voltam 5 horas depois”. Senta na mesa e em questão de minutos o diálogo começa, com uma pergunta estúpida ou com uma afirmação do tipo “Está chovendo, ainda bem que aqui esse terraço tem toldo”. No terraço com mici de Obor aconteceu de saber da vida inteira de um desconhecido, após ter perguntado uma simples questão: “Depois de dez anos aqui em Bucareste, o senhor já se adaptou ou ainda sente falta de sua cidade natal?”. É mais ou menos assim que sempre acontece: as pessoas querem falar, os mici e todo esse mercado imenso não são mais do que um pretexto para trocar duas palavrinhas enquanto as sacolas jazem desajeitadas embaixo dos bancos e mesas. Desde que passou a frequentar o espaço, nunca testemunhou nenhum conflito mais sério.
Mais para lá, no mercado, é preciso estar mais atento. Na postura de potencial cliente você corre o risco de se enredar num triângulo de interesses vendedor-cliente-vendedor. Ciprian sentiu isso na própria pele. Havia uma senhora de quem ele comprava ervas e condimentos, numa banca próxima a entrada. Porém, certo dia, Ciprian encontrou manjericão fresquinho na banca de outra pessoa e comprou um molho. Fez até uma foto para o Facebook com o manjericão, onde aparecia visivelmente satisfeito pelo seu achado. Algumas mesas longe dali, alguém espionava atentamente seus gestos. Quando Ciprian passou por ali para cumprimentá-la, a mulher explodiu: “Quê? E eu aqui não tenho manjericão? Pois compre daquele lá de agora em diante!”.
Não cortaram as relações. Depois de três-quatro dias, na vinda seguinte até Obor, passou por lá, disse um “Beijo a mão” meloso perguntando-a com o olhar se o perdoa pelo que fez. “A resposta que deduzi foi essa: Tudo bem, serei perdoado, mas é feio o que fiz, “vou deixar passar essa”. O filho pródigo volta para casa e, por ter sido a primeira vez, foi aceito, mas estava claro que eu devia sofrer um pouco antes. Seja como for, meu sentimento é de que algo se rompeu para sempre”.
Ciprian volta constantemente nesse lugar das intersecções frágeis entre as pessoas e suas mercadorias, e o faz sem idealismo. Sabe que nem toda a truta veio das águas cristalinas de Făgăraș, como está escrito na etiqueta, e que é impossível todos esses queijos à venda terem sido feitos no Vale de Sibiu. “Parece até que eu vejo, caminhões cisterna partindo de lá diariamente em direção a Bucareste. Uma vez fiz uma piada: Como acabar com o negócio de um cara que vende queijo do Vale de Sibiu? Roubando a cartela dele de acesso no Metro” [nota explicativa: Metro é uma rede especial de supermercados para clientes pessoa jurídica]. Já ouviu dizer que uns colocam farinha no queijo, para pesar mais, e que não há como disponibilizar toda a mercadoria para verificação em laboratório. Guia-se pelo gosto e, por enquanto, em Obor foi onde encontrou o melhor queijo de Bucareste.
Volta, antes de tudo, por causa da vida que há em Obor, vida que já passou a amar. Coloca no Facebook os achados, apresenta o terraço dos mici aos amigos, depois os acompanha pelo mercado. E não é o único que faz isso: como prova temos a popularidade da hashtag#obor. Observa que, de uns anos para cá, vem caindo a média de idade daqueles que almoçam no terraço dos mici. Além daqueles que trabalham nos novos edifícios de vidro perto de Obor, acredita que os novos frequentadores são pessoas que vem por curiosidade, depois de terem lido algo na internet. “As pessoas fazem de uma ida a Obor motivo de festa e contam para os amigos”. Esses diferentes universos de Bucareste se comunicam e convivem, apesar das diferenças. E, de agora em diante, será preciso cada vez mais essa aliança para manter Obor vivo: por trás o mercado, na rua Ziduri Mosi, já apareceu a silhueta prateada de cyborg de um mall.